Wednesday, June 10, 2015

Por que um "Jesus travesti" incomoda tanto?

Não. Ela não estava representando Jesus. Também não houve cenas de destruição de imagens, ou casos apavorantes de impalamento de crucifixos. Houve apenas uma travesti encenando uma crucificação. Sobre o seu madeiro, uma inscrição dizia "Basta de homofobia." Sua mensagem era clara: o preconceito também mata e também crucifica. Mas sua crucificação ganhou as redes sociais e foi alvo de um repúdio vociferante daqueles que se auto declaram escolhidos legítimos de Deus. Pessoas que provavelmente não dedicaram o mínimo de tempo para refletir sobre o significado da crucificação.
Milhares de pessoas foram crucificadas durante o Império Romano. A crucificação era um método comum de se eliminar indivíduos que haviam se tornado inconvenientes para a sociedade: ladrões, arruaceiros, assassinos, rebeldes e, em alguns casos, pobres e proeminentes pregadores da Palestina, cuja mensagem trazia escândalo por tratar de assuntos como amor, caridade, autonegação, justiça, perdão, ganância, cobiça, e um certo Reinos dos Céus que para o homem comum soava como loucura e blasfêmia. Já naquele domingo, sete de Junho, na parada gay de São Paulo, a travesti representava toda a exclusão sofrida por minorias sexuais. Ali, sobre o solo sagrado da capital nacional do Capital, sua imagem ensanguentada sobre uma cruz nos lembrava que, como Jesus, ainda hoje, em nossa sociedade, existem pessoas excluídas, privadas de respeito humano e que sofrem. Ela não representava Jesus, ela representava a dor.
E quantos crucificados já tivemos em campanhas midiáticas, não é mesmo? Houve, por exemplo, a mostra de imagens do artista cubano Erik Ravelo,  em que crianças apareciam simbolicamente crucificadas por problemas sociais como o abuso infantil, a má alimentação e o tráfico de órgãos. Em outro caso, o cidadão brasileiro foi "crucificado" na capa da revista Veja pelos altos impostos que corroem sua renda. Na paródia da crucificação, até mesmo o jogador Neymar padeceu sobre o madeiro na capa da revista Placar. (Essas e uma série de outras campanhas publicitárias podem ser visualizadas aqui: http://goo.gl/n1bW9n)


Mas não houve postagens de famosos pastores em redes sociais por causa dessas crucificações. Não houve revolta ou comoção social. Não houve larga divulgação ou acusações pesadas e constantes de sacrilégio, provocação, profanação ou falta de respeito. Nas timelines do Facebook não saltaram às vistas mensagens como "Nossa, que absurdo!", ou "Que blasfêmia!". Apenas um silêncio e uma concordância azeda impecáveis de uma sociedade que ainda não entendeu nem o sentido da cruz, nem do Cristo.
A cruz é um objeto de execução do mundo antigo presente em diferentes culturas, línguas e nações. Um objeto de morte que sobreviveu ao tempo como um sinal de esperança para a humanidade. O Novo Testamento revela que pela cruz, Deus reconciliou consigo todas as coisas. O pastor Rob Bell informa que o mistério que revela a essência da reconciliação de todas as coisas com Deus está no fato de que a morte sobre a cruz tornou-se o canal direto através do qual o amor de Deus flui para todas as pessoas.
Já o Cristo foi aquele que sobre seus ombros vestiu a morte para que a vida pudesse ser acessível a todos. E essa é a mensagem do evangelho, da Rude Cruz: que Cristo morreu por todo e cada ser humano, para que todo e cada ser humano pudesse ter acesso a Deus, por perdão e por graça. O Apóstolo São Paulo nos alerta que por um homem, Adão, todos os homens foram condenados. Mas ele também nos diz que por outro homem, o segundo Adão, todos os homens foram salvos. O profeta Isaías diz que o Cristo, como cordeiro pascal, tomou sobre si nossas dores. São Tomás de Aquino indicou a cruz como caminho pelo qual o sofrimento pode aperfeiçoar a paciência de todos os homens. Martinho Lutero coloca que sobre a cruz, Cristo tornou-se o que Ele não era (homem), para que os homens se tornassem aquilo que eles também não eram (filhos de Deus). Sobre a cruz, Deus fez-se pecador como nós. E nosso sofrimento tomou forma humana. O próprio Cristo identificou-se intimamente com aqueles que sentem dor ao comparar-se ao estrangeiro em terra desconhecida, ao prisioneiro carente de visitas, ao pequenino que passa fome, ao homem necessitado de roupas. Ele foi profundo ao afirmar que qualquer um que ajudasse a estes pequeninos estariam na verdade ajudando ao próprio Jesus.

Sobre os ombros do Senhor, naquele madeiro, muitos sofrimentos se reuniram e muitas dores se acumularam. Ali, de braços abertos, Ele se doou pelo pobre e pelo rico, pelo negro e pelo branco. Todo sofrimento, toda dor e toda esperança humana experimentaram em um homem a redenção da cruz. E esta é a consciência de muitos em nossa sociedade: de que Jesus morreu por todos nós. Por esta razão a representação de crianças crucificadas não nos causa revolta, mas antes nos adverte do sofrimento dessas crianças: todos nós um dia fomos crianças, ou teremos crianças. Por isso a visão de um Neymar crucificado chega a nossos olhos com um ar de empatia ou apenas um desgosto leve: todos gostaríamos de ser um rico jogador de futebol. Por isso o cidadão crucificado pelos altos impostos nos comove: ele nos lembra nosso próprio sofrimento e nossa sensação de impotência diante da extorsão impalatável do nosso suado trabalho. Mas poucos são aqueles que conseguem ver o sofrimento de uma travesti quando esta se encontra prostrada sobre uma cruz. Muito pelo contrário: veem abominação e calúnia, pois na travesti, não conseguem enxergar humanidade.  Pouquíssimos são aqueles que conseguem compreender o sofrimento de uma pessoa transgênero. E dificilmente alguém gostaria de ser uma. Ser jogador de futebol dá status, ser travesti dá problemas, e muitas vezes morte.

Nas travestis não nos vemos e não nos encontramos. Nelas não conseguimos observar a mesma matéria espiritual e transcendente que vive em nós. Para muitos, não são pessoas, mas bonecas sem sentimentos que habitam apenas as esquinas de pontos de prostituição. Nelas não enxergamos sofrimento ou dor. Não seriam dignas de tal piedade ou caridade; compaixão ou amor; aceitação ou amizade, simpatia ou empatia. Não são dignas nem mesmo do valor mais sagrado de uma sociedade (pseudo)cristã: a cruz e o seu Cristo. Pô-las junto a uma imagem sagrada se torna profano pelo ato em si, a despeito de seu profundo significado, sobre o qual não estamos nem um pouco dispostos a refletir. Por elas, Ele não morreu. E para elas, não haverá igreja, nem comunhão dos santos, nem perdão dos pecados, nem ressurreição dos mortos, nem vida eterna. Caso entrassem em muitas igrejas, seriam indelicadamente convidadas a se retirar, pois para o cristianismo fundamentalista, Deus está no negócio de dizer quem é perfeito o suficiente para entrar; e quem tem a lista de atributos qualificantes para pertencer. Ser uma travesti o exclui imediatamente desta lista. Aliás, qual foi a última vez que você viu uma travesti entrar numa igreja? Ela, inclusive, será muito sortuda se ao menos atingir a idade em que poderá assumir-se como transgênero e integrar a lista dos que estão de fora; como tantos outros crucificados pela sociedade. Segundo uma pesquisa divulgada pela Universidade da Califórnia em conjunto com o Instituto Americano para Prevenção de Suicídios, apenas nos Estados Unidos (país em que hoje 60% da população apóia o casamento gay), um número incrível de 41% da população trans já tentou cometer suicídio em algum momento da vida (http://goo.gl/Sk1PtX). Muitos não suportam a pressão sofrida em decorrência daquilo que são: imagine viver num estado de constante rejeição social; conflitos internos e externos.

Assim, a "travesti Jesus" se torna profana, não por invocar a imagem religiosa, mas por simplesmente ser travesti. Um Jesus travesti incomoda porque para muitos é perturbador pensar que por ela, o Cristo Redentor da humanidade também tenha morrido: ela não é humanidade; é melhor que seja deixada de fora, junto com os outros indesejáveis. Sua crucificação pela sociedade fica palpavelmente evidente, e a paródia do Jesus travesti se torna escandalosamente real.

Mas ainda há uma boa notícia: houve outro que também foi odiado pelo simples fato de ser quem era. Ele contrariou o coração dos homens, e a ordem social imposta. Fariseus religiosos, que não entram no Reino de Deus e nem deixam que outros entrem, cuspiram nele também, e o fizeram símbolo de maldição. Houve outro sobre quem a multidão, cheia de ódio, gritou de forma horrenda e desumana: "Crucifica-o! Crucifica-o!" e ainda "Tem que matar! Só matando". Olhem para o lado e verão que não estão sozinhas. Da cruz o Senhor lhes diz: "estarão comigo no paraíso." Jesus as ama profundamente, e o sacrifício expiatório também foi por cada uma de vocês.

De um amigo anglicano desconhecido, que nutre por vocês um falho amor cristão.