Sunday, July 19, 2015

Sobre presbiterianos, cerveja e reforma

Algumas semanas atrás eu tive a oportunidade de participar de um encontro de jovens com alguns presbiterianos aqui da cidade. Gosto muito da Igreja Presbiteriana dos EUA. Apesar de me considerar anglicano, o culto presbiteriano é mais parecido com o que estou acostumado no Brasil e a quantidade de pessoas da minha faixa etária é consideravelmente maior. Mas aquele encontro não foi nada usual; nem para os padrões americanos.

A diferença já se anunciou pelo local escolhido para a reunião: uma famosa cervejaria local chamada Otto's, conhecida por comercializar algumas das melhores cervejas da região. A ministra de jovens me deu uma carona e, enquanto dirigíamos a caminho do Otto's, perguntou-me preocupada: "Você bebe?". Ela me abriu um largo sorriso quando respondi "Não bebia, hoje bebo de vez em quando."

Quando finalmente chegamos ao Otto's, nossa grande mesa - composta de um aglomerado mesinhas menores - já estava lotada, e não pude deixar de observar na primeira meia hora de conversa o que parecia ser um padrão entre aquelas pessoas: jovens entre 25 e 30 anos, estudantes de mestrado ou Phd, alguns, como eu, oriundos de outras igrejas, mas definitivamente todos portadores de uma serie de questões não resolvidas sobre a vida, sobre a fé e sobre Deus.

No começo eu achei que seria estranho participar daquilo. Nunca havia me reunido com o pessoal da igreja presbiteriana a não ser no culto matutino de domingo (para onde vou correndo assim que a reunião na igreja anglicana se encerra). Mas eu sabia que os presbiterianos locais, assim como os anglicanos e luteranos, estavam embarcados na recente onda de transformações que está ganhando parte das igrejas americanas. E era nisso que eu estava interessado.

O cristianismo progressista me atrai. Mas já tive experiencias desagradáveis no passado que me fazem muito duvidoso quando em meio a um grupo de cristãos progressistas. Algumas vezes, parece que a reunião é apenas de progressistas e o termo cristão fica esquecido em algum canto da igreja. Então fico observando. Ouvindo, refletindo, até me certificar de que encontrei substancialidade espiritual o suficiente para me sentir confortável - quão julgador e folgado eu sou, não é mesmo?

Mas o resultado daquela reunião me impressionou.


Depois de um super copo de uma cerveja artesanal com um toque de cidra, começaram as apresentações. "Oi, sou Romulo, sou brasileiro, estudante de Mestrado, engenheiro." Vi sorrisos e ouvi boas-vindas dos quatro cantos da mesa; a ainda uma avalanche de perguntas sobre a minha vida. Depois uma outra "visitante" foi apresentada. Ela declarou-se "dissidente" de uma igreja batista local e também recebeu calorosas boas-vindas.

Mais assuntos começaram a surgir, e quando eu esperava o início de uma conversa política e acadêmica tediosa, questões incríveis começaram a brotar das bocas dos meus recém-conhecidos amigos americanos: uma menina de cabelos castanhos falou sobre o racismo no Sul e como algumas denominações eram lenientes com aquele pecado; a bela moça de cabelos loiros e olhos azuis comentou que estava se mudando para outra região conhecida por ser mais conservadora, mas que já havia encontrado uma igreja na área que tinha visões mais progressistas e onde ela poderia cultuar a Deus de acordo com o seu entendimento. O rapaz gay ao meu lado comentou algo sobre estar há algum tempo naquela congregação e o cara "com muito jeito de nerd" do outro lado explicou um pouco sobre rubéola, Deus e o processo evolutivo  (>.<) : mais tarde viria a descobrir que ele tinha um título de Phd.

Depois vieram os comentários mais específicos a respeito de Deus. Os rostos daquelas moças e rapazes preenchidos com uma sensação bastante conhecida minha: a dúvida. Nós falamos sobre como Deus é um mistério que não entendemos. E a ministra de jovens fez um curto discurso.

"Deus é esse mistério que não podemos entender. É como a trindade. Três em um? Um em três? A vida cristã é um mistério. E a vida em si e um mistério. E é isso que tornam ambas bonitas."

Ela tocou no ponto-chave que me faz, dependendo da abordagem, ou me sentir "em casa", ou sair correndo pela porta como se tivesse sido tragado para uma versão evangélica de "The Walking dead". Havia dúvida ali. E a dúvida era permitida. A dúvida era aceita. A dúvida não era um tabu. "Fé sem dúvida não é fé, é convencimento", comentei em algum momento, ao que sorrisos cheios de empatia se abriram para mim novamente. O assunto seguiu: testemunhos foram compartilhados, piadas foram contadas e palavras de encorajamento foram trocadas. Ao final, embora um pouco sonolento com aqueles dois copos enormes  de cerveja, pude ouvir a ministra do outro lado da mesa orando para terminarmos e abençoando a moça loira que estava de partida. Nos despedimos, fomos embora, e eu fiquei com um gosto mais forte do que a cevada na boca. Havia um gosto de Reino que há muito tempo eu não experimentava. Voltei para casa com um pedaço do céu no coração. E aquilo me fez sentir pela primeira vez a densidade da aparente "reforma" sobre a qual há algum tempo tenho falado e ouvido falar.

Dizem que Reforma acontece quando diferentes pessoas em diferentes lugares começam a falar sobre coisas parecidas e revolucionárias.

Lutero falava na Alemanha e Calvino predestinava a Suíça ao paraíso, ao que bispos anglicanos pressionavam por separação da Igreja de Roma. E essa tem sido a percepção de alguns quando observa-se o que tem acontecido na igreja cristã de nossa era: de um lado, um choque cultural muito forte que está levando jovens entre 20 e 30 anos a abandonarem as confissões religiosas em números nunca antes vistos; e de outro, um movimento desses mesmos dissidentes, conhecido no Brasil como desigrejados, movendo-se em direção a praticas religiosas bastante diferentes da ortodoxia convencional.

Para exemplificar o caso dos Estados Unidos, o gráfico abaixo, publicado pelo Barna Group, revela o percentual de pessoas que se identificam como cristãos em cada geração de americanos. Esse gráfico tem assustado pastores, líderes, ministros de jovens, ministros de louvor, pais e mães com um dado gritantemente visível nos bancos das igrejas: uma grande parcela da nova geração, principalmente daqueles entre 16 e 29 anos, está deixando a igreja.

Hoje, cerca de 40% dos jovens americanos entre 16 e 29 não mais se identificam como cristãos. Os Estados Unidos são conhecidos (ou eram) como a maior nação cristã do planeta.

O Barna Group ainda tentou identificar principais razões de tantos jovens deixarem a igreja. Elas foram classificadas em seis categorias:

1 - O caráter controlador das igrejas.

Para a geração emergente, a igreja é super protetora e controladora, utilizando-se de técnicas baseadas no medo. Um quarto dos jovens entre 18 e 29 anos disseram que "os cristãos demonizam tudo fora da igreja" e 22% afirmaram que "a igreja ignora os problemas do mundo real." Ainda, 18% concordaram plenamente com a frase "minha igreja está preocupada demais com filmes, músicas e videogames."

2 - A experiência cristã é rasa

A nova geração acredita que sua experiência com o cristianismo tem sido rasa e diluída. Cerca de 31% disseram que a igreja é entediante. Cerca da 20% daqueles que tiveram alguma experiência com a igreja na adolescência afirmaram que "aparentemente, faltou Deus na minha experiência com a igreja."

3 - A igreja parece ser antagônica à ciência

Uma das maiores percepções da geração de jovens é que a igreja está desatualizada quando o assunto é ciência. Cerca de 35% dos jovens adultos afirmaram que "os cristãos são muito confidentes e pensam que sabem todas as respostas." 30% ainda concordaram que "a igreja está em descompasso com o mundo científico em que vivemos", 25% tinham a percepção de que "Cristianismo é anti-científico" e 23% reconheceram que estavam enfadados do debate "Criacionismo versus Evolucionismo". A pesquisa ainda descobriu que jovens cientistas cristãos estão lutando para se manterem fiéis a suas crenças e ao mesmo tempo a suas funções na indústria científica.

4 -  Jovens cristãos dizem que sua experiência na igreja relacionada à sexualidade foi simplista e julgadora.

Um dos grandes problemas para a geração emergente é como lidar com questões como "pureza sexual" e castidade numa cultura em que as pessoas estão se casando pela primeira vez aos 29 anos e não mais aos 19 anos. 17% dos entrevistados afirmaram "terem cometido erros e se sentirem julgados pela igreja." Entre católicos, 40% dos respondentes afirmaram que "os ensinamentos sobre sexualidade e controle de natalidade da igreja estão desatualizados."

5 - Há um desconforto com a natureza exclusivista do Cristianismo

Cerca de 30% dos jovens cristãos disseram que a igreja "tem medo das crenças de outras confissões" e 22% dos jovens adultos com alguma raiz cristã afirmaram que a "igreja é como um clube: apenas para os que são de dentro."

6 - Mas talvez nenhuma dessas razões seja tão forte e reflita de forma tão evidente a face da geração de cristãos que está fazendo as malas e deixando a igreja: a capacidade de questionar. Advindos de uma ambiente cujo acesso a informação alcançou níveis impressionantes (e continua a crescer), 36% afirmaram não poder fazer, dentro da igreja, "perguntas essenciais sobre a vida". Ainda, 23% afirmaram ter "dúvidas intelectuais sobre a fé.

E se os números dessa pesquisa ainda não acenderam um sinal vermelho na sua mente, talvez os dados seguintes ajudem a entender melhor:

87% dos jovens americanos não-cristãos veem o cristianismo como julgador.
85% dos jovens americanos não-cristãos veem o cristianismo como hipócrita.
78% dos jovens americanos não-cristãos veem o cristianismo como algo desatualizado.
75% dos jovens americanos não-cristãos veem o cristianismo envolvido demais em política.
91% dos jovens americanos não-cristãos veem o cristianismo como antigay.

Já entre os jovens que se declararam cristãos:

50% dos jovens americanos cristãos veem o cristianismo como julgador
50% dos jovens americanos cristãos veem o cristianismo como hipócrita
50% dos jovens americanos cristãos veem o cristianismo envolvido demais em política.
33% dos jovens americanos cristãos veem o cristianismo como algo desatualizado e desconexo da realidade.
80% dos jovens americanos cristãos veem o cristianismo como antigay.

Há uma luta ocorrendo dentro dos corações de parte da nova geração de cristãos.

E desta luta interna, talvez algumas boas respostas (ou tentativas de se fazer paz com as dúvidas) estejam saindo. E, quem sabe, talvez moldando uma nova forma de cristianismo.

Primeiramente eles se chamava emergentes. E no Brasil, o pensamento ganhou alguns aderentes. Todavia, quando ficou evidente que a mentalidade emergente ainda não alcançava o cerne da questão, outro movimento tomou forma e andou um pouco mais: o novo ramo dentro do Cristianismo não estava questionando a liturgia, nem estava procurando por uma forma de culto mais "Hippie" como aquelas dirigidas por Mark Driscol em sua campanha lamentável. Essa geração estava também questionando a teologia, a igreja, o literalismo seletivo, a ortodoxia e a si próprios. Lutando consigo mesmos sobre as doutrinas da igreja e tendo sérias dificuldades com a incapacidade de a Igreja lidar com o questionamento. 

Obviamente, toda a pesquisa do grupo Barna foi realizada dentro do contexto estadunidense, e com certeza haveria diferenças se a mesma tivesse sido realizada no Brasil. Mas vamos ser sinceros... Acho que essa "luta consigo mesmo" não está restrita a jovens cristãos americanos entre 20 e 30 anos que estão "deixando" a igreja. Afinal, quantos desigrejados brasileiros você conhece? O fenômeno da de transformação do Cristianismo pode parecer algo distante para nossos corações verde-amarelos, mas se observarmos mais atentamente os números, veremos que o percentual de evangélicos sem vínculo institucional saltou de 4% para 14% do número total de evangélicos entre 2003 e 2009.

E se formos sinceros, talvez observemos que, mais do que aparentemente, perguntas como as seguintes tem estado no fundo da mente de muitas pessoas, e às vezes em nossos próprios lábios:

1 - "Se temos 2 bilhões de cristãos no mundo e 5 bilhões de não-cristãos, quer dizer que só da geração contemporânea, teremos no mínimo 5 bilhões de pessoas queimando no inferno? 5 BILHÕES???"

2 - "O que aconteceu com meu amigo Pedro que se suicidou? A ortodoxia evangélica me diz que ele foi para o inferno. Mas a ciência me diz que ele estava doente, tinha depressão."

3 - "Estou namorando há 5 anos, mas não temos condições financeiras de nos casarmos pois só nos formamos na faculdade em 3 anos. Temos um relacionamento sério e estável e nos amamos muito. Nos últimos meses, decidimos manter relações sexuais. Perderemos a salvação por causa disso?"

4 - "Tenho dúvidas quanto aos escritos bíblicos. Será que houve alguma alteração ao longo da história? Será que alguma parte da Bíblia não foi alterada nesses quase 2 mil anos? E quanto ao cânon? Será que não há outros escritos da igreja primitiva que podemos usar?"

5 - "Minha melhor amiga é lésbica. Ela é muito legal e até vai à igreja de vez em quando. Será que ela vai pro inferno por ser lésbica? O pastor está certo quando a chama de abominação?"

6 - "Hoje aprendi sobre as escalas geológicas na aula de Geologia, mas na igreja aprendi que o mundo tem apensas 6 mil anos... Quem está errado nessa história? A Bíblia, a ciência ou a forma como eu interpreto a Bíblia?"

7 - "Hoje minha mãe faleceu. Ela se foi cedo. Teve câncer. Quanta dor. Quanto sofrimento. Deus, você esta aí? Você pode me ouvir? Por que você deixou isso acontecer? Você existe mesmo?"

Se você já se fez pelo menos duas dessas perguntas, talvez tenhamos mais coisas em comum do que pareça. E nós não estamos sozinhos, pois essa "fome e sede" por mudanças tem sido observada em várias partes do mundo e eventualmente produzido mensageiros; quem sabe até mesmo reformadores.

De repente, uma blogueira filha de pastor e crítica do evangelicalismo, chamada Rachel Held Evans, começou a ganhar notoriedade por suas postagens a respeito do literalismo seletivo e da ordenação de mulheres ao ministério. Rob Bell, pastor de uma megaigreja, deixou o ministério para embarcar numa jornada teológica que o levaria a questionar questões intocáveis para os evangélicos: da condenação ao inferno à inerrância das Escrituras. Enquanto isso, em Washington, D.C, Brian McLaren, conhecido pastor e teólogo, celebrava a união homoafetiva de seu filho e caminhava na direção daquilo que ele chama de uma "ortodoxia generosa". Em Denver, uma pastora luterana abre as portas da "Casa para todos os Santos e Pecadores" misturando a teologia luterana com elementos pós-modernos e radical inclusivismo. Em Chicago, um grupo de pastores metodistas iniciavam os trabalhos da frutífera Urban Village Church, numa busca radical por tornar a igreja novamente relevante dentro da sociedade.  Na Carolina do Norte, o Wild Goose Festival, evento cristão alternativo, reúne mais e mais pessoas a cada ano. Não bastasse, a famosa banda de música cristã Gungor - e sua associação "The Liturgists" -  lançava canções que desafiavam bastante a teologia ortodoxa com os títulos "God, our Mother" (Deus, nossa mãe) e "Beautiful Things" (Coisas bonitas). E a lista segue crescendo e vindo de todas as classes, posições políticas, raças e cores. Recentemente, grandes denominações como Luteranos, Presbiterianos e  Episcopalianos (anglicanos) tem, para todos os efeitos linguísticos, "embarcado nessa onda". Acho que vou precisar de escrever uma postagem só para apresentar essas pessoas em mais detalhes (ufa!).


Nadia Bolz-Weber, pastora luterana da igreja Casa para todos os Santos e Pecadores, em Denver, Colorado.


A Banda Gungor tem chocado o mundo evangélico com canções em que se referem a Deus como "Nossa mãe" (na parceria The Liturgists) e em que falam sobre a dúvida e a fé como "Beautiful Things" e "Vapor". (recomendo fortemente que cliquem nos links para as canções)


Um dos pontos de encontro da igreja metodista Urban Village Church, em Chicago. A igreja cresceu muito em pouco tempo e se dividiu em congregações que se reúnem em diferentes localidades de uma das cidades mais seculares dos Estados Unidos.


Congresso da juventude luterana, que tem dado cada vez mais espaço a pregadores como Nadia Bolz-Weber e Shane Claiborne. Se souber falar inglês, vai um vídeo incrível aqui: https://goo.gl/xKFwg2


Brian McLaren, teólogo reconhecido e escritor condecorado, tem sido uma das principais vozes teológicas desse novo cristianismo.


Rob Bell, pastor e escritor, tem desafiado a ortodoxia cristã em seus livros sobre céu, inferno e a danação eterna. Uma de suas maiores obras chama-se "O Amor Vence - Um livro sobre o céu, o inferno e o destino de todas as pessoas que já passaram pela terra"


Rachel Held Evans, escritora estadunidense, é uma blogueira popular e autora o best-seller do New York Times "A Year of Biblical Woomanhood" (Um ano de feminilidade bíblica), em que relata sua experiência de ter seguido, durante um ano, todas as instruções bíblicas destinadas a mulheres. Uma de suas postagens em português pode ser encontrada aqui: http://goo.gl/Lpq7wG


Igreja Episcopal (Anglicana) de São Gregório, em São Francisco, Califórnia. A igreja tem experimentado novas formas de celebração revisitando tradições dos cristãos primitivos.


Eu poderia combinar questões teológicas e litúrgicas, e como elas variam de acordo com o mensageiro para explicar um pouco mais sobre essa aparente reforma - e recomendo novamente o trabalho de Phyllis Tickle sobre o assunto. Mas acho que a experiência que tive com os jovens presbiterianos talvez seja mais explicativa do que qualquer posicionamento teológico que tentasse descrever. Sim, meus amigos, porque ali, sentado à mesa calvinista no Otto's, tomando aquela bela cerveja com toque de cidra, eu pude experimentar em primeira mão esse processo de transformação: havia ali pessoas de todos os tipos, minorias eram bem vindas, a ciência era bem vinda e acima de tudo, perguntas eram muito bem-vindas. O peso da fé inabalável era retirado das costas não só da ministra, como também dos fiéis. Admitir que talvez estivéssemos errados sobre aquilo tudo era "ok". Não acreditar em tudo era apenas "ok". Ali, entre cervejas e orações, entre discussões teológicas e revelações de medo e incerteza. Entre perguntas como "e se eu estiver errado" e "e se eles estiverem certos". Entre falácias pessoais e questões sobre o cristianismo, havia essa sensação de espiritualidade leve no ar; de que por Jesus, valia a pena tentar crer. E que pelos irmãos, valia a pena estar ali. E com a graça de Deus, nós continuamos nos reunindo e eu continuo contando os dias para nosso próximo estudo bíblico.

E torcendo para que ninguém traga Calvino à mesa, obviamente.

Wednesday, July 1, 2015

Todo mundo é um literalista bíblico até que alguém fale sobre a gula



...ou o divórcio, ou a fofoca, ou a escravidão, ou o uso do véu, ou os ensinamentos de Jesus sobre a não-violência, ou a "abominação" de se comer ostras, ou o pecado digno de fogo do inferno de se chamar outras pessoas de idiotas.

Então precisamos de um pouco de contexto.

Então precisamos de um pouco de graça.

Então precisamos de um pouco de espaço para discordar.

Eu comecei a pensar sobre isso depois que fui criticada na semana passada por causa da minha postagem sobre amar as crianças gays incondicionalmente. Algumas pessoas ficaram muito chateadas que eu tenha tido a audácia de escrever um post inteiro do blog falando sobre a necessidade de se colocar um fim ao bullying contra crianças LGBTs sem incluir sequer uma condenação biblicamente embasada contra pessoas LGBTs, ou pelo menos uma discussão teológica em torno da questão da homossexualidade e das Escrituras.

Versículos da Bíblia foram citados. Cartas abertas foram escritas. Previsões do fim dos tempos foram feitas. Travesseiros em minha casa foram jogados a distâncias recordes.

É engraçado. Ontem, no "Superlativos de Domingo" (série de postagens que a autora publica regularmente), eu incluí uma citação de Mark Twain na qual ele se referiu a um vendedor de óleo de cobra como "um idiota", mas ninguém deixou um comentário irritado advertindo-me sobre o fogo do inferno baseado no ensino de Jesus em Mateus 5:22 de que "quem disser ao seu irmão: 'Você não vale nada' será julgado pelo tribunal. E quem chamar o seu irmão de idiota estará em perigo de ir para o fogo do inferno."

Também ninguém levantou objeções bíblicas sobre a gula algumas semanas atrás, quando eu casualmente mencionei ter me engajado numa overdose de iogurte cremoso (morango, com uma pilha de chips de chocolate, pedacinhos de Oreo e bolachas de chocolate em formato animais na parte superior, se você se interessar), ou sobre o materialismo quando eu compartilhei fotos de nosso novo carro. (Ei, para algumas pessoas, um novo Honda Civic pode parecer bastante ostentação.)

E, apesar da enxurrada de e-mails que eu recebo a cada semana condenando o meu apoio à ordenação de mulheres ao ministério, eu nunca recebi algo tão dramático quanto uma carta aberta criticando a minha recusa em usar o véu, apesar de o meu Website estar cheio de provas fotográficas daquilo que o apóstolo Paulo chama de "desgraça" em 1 Coríntios 11: 6.

Podemos rir destes exemplos ou achá-los bobos, mas a linguagem bíblica utilizada nesses contextos é na verdade bastante forte: comer ostras é uma abominação, a cabeça de uma mulher sem véu é uma desgraça, fofoqueiros não herdarão o reino de Deus, palavras descuidadas são puníveis com o inferno, rapazes que olharem para mulheres com desejos lascivos devem arrancar seus olhos.

Caramba, você poderia fazer um belo caso bíblico sobre a gula ser um "estilo de vida pecaminoso", que foi normalizado pela nossa cultura de rodízios e filas transbordantes nos restaurantes self-services, começando com passagens como Filipenses 3:19 ("seu deus é o ventre "), Salmo 78: 18 ("eles tentaram a Deus nos seus corações, pedindo a comida que eles queriam "), Provérbios 23:20 (" não esteja entre os bêbados, nem entre os comilões de carne "), Provérbios 23: 2 ("coloque uma faca na sua garganta se você é dado ao apetite "), ou melhor ainda, Ezequiel 16:49 ("Agora, este foi o pecado de sua irmã Sodoma: ela e suas filhas eram arrogantes, gulosas e despreocupadas, pois elas não ajudaram os pobres e necessitados.")

No entanto, você não vê reuniões de vigilantes do peso antes dos batismos; ou pessoas segurando placas dizendo "Deus condena os Glutões"  do lado de fora dos antros de iniquidade que são as churrascarias.

E nós nem sequer tocamos no materialismo, ou no fato de que no dia em que eu enchi minha cara de iogurte cremoso, 30.000 crianças morreram de doenças evitáveis ​​e muitas mais passaram fome.

Parece que quanto mais onipresente a violação bíblica, mais invisível ela se torna.

Então, por que tantos cristãos se concentram nos chamados "versículos-gritantes" relacionados à homossexualidade, ignorando os "versículos-gritantes" relacionadas à gula ou à ganância, ao uso do véu ou ao divórcio? Por que é que a homossexualidade é o grande debate bíblico desta década e não a escravidão (como já foi um dia), ou o crescente problema do materialismo e da desigualdade? Por que tantos defendem que o casamento gay seja ilegal, mas não o divórcio, quando Jesus nunca fez referência ao primeiro, mas falou bastante negativamente sobre o segundo?

Embora existam certamente questões hermenêuticas e culturais importantes em atuação, eu não posso deixar de me perguntar se também não há  algo mais nefasto em curso. Eu não posso deixar de me questionar se talvez a condenação bíblica seja muitas vezes um jogo de números.

Embora ela afete mais pessoas do que nós tendamos a perceber, estatisticamente, a homossexualidade afeta muito menos de nós do que a gula, o materialismo, ou o divórcio. E como Jesus disse tantas vezes em seu ministério, nós gostamos de focar nas violações bíblicas (reais ou percebidas) de grupos  minoritários, em vez das nossas próprias.

Em suma, nós gostamos atacar em bando. Nós gostamos de produzir armas usando os versos que nos afetam menos e, em seguida, atacamos grupos minoritários com elas. Ou melhor ainda, evocamos alguma linguagem sentimental sobre falar a verdade em amor pouco antes de pegar nossas pinças removedoras de ciscos que nos ajudam a desviar nossas mentes das traves desconfortáveis ​​em nossos próprios olhos.

Vemos isso na história dos líderes religiosos que encurralaram a mulher apanhada em adultério. Ela era um alvo tão fácil: uma mulher, provavelmente pobre, sem poder, e culpada do escândalo favorito dos fariseus: o pecado sexual. Quando eles a trouxeram a Jesus, estavam usando-a como um exemplo para testá-lo; para ver quão "bíblica" a resposta dEle seria. (Veja Deuteronômio 22:14-23) Jesus ajoelhou-se e rabiscou na areia antes de dizer: "Aquele que estiver sem pecado pode atirar a primeira pedra." Eles deixaram cair suas pedras.

Enquanto evitar o farisaísmo certamente afeta nosso literalismo seletivo, também temos boas razões para não condenar uns aos outros pelas violações bíblicas onipresentes (novamente, reais ou percebidas) em nossa cultura.

É difícil para mim simplesmente condenar o divórcio, por exemplo, quando eu conheço várias mulheres cujas vidas e as vidas de seus filhos podem ter sido salvas por ele, ou quando eu ouço pessoas me dizerem que prefeririam ter saído de um lar disfuncional do que ter crescido num. Temos ainda uma repulsa natural à ideia de verificar o Índice de Massa Corporal das pessoas antes de aceitá-las em nossas igrejas, especialmente quando a obesidade não é necessariamente um reflexo da gula e quando nós sabemos por nossa própria experiência ou pelas experiências daqueles que amamos que um peso não saudável pode resultar de uma variedade de fatores - de componentes genéticos a psicológicos - e quando alguns dos nossos amigos favoritos (ou quando nós mesmos) lutamos com uma relação complicada com a comida, seja através de comer em excesso ou da má alimentação.

Novamente, é um jogo de números. É difícil "outrificar" as pessoas que conhecemos e mais amamos. Parece clichê, mas tudo muda quando é seu irmão ou irmã que se divorcia, quando é o seu filho ou filha que é gay, quando é o seu melhor amigo que luta com algum vício, quando é o seu marido ou esposa fazendo algumas boas perguntas sobre o Cristianismo a respeito das quais você nunca pensou antes. Nossos relacionamentos têm uma tendência de destruir nossas categorias, de derreter o preto e o branco em cinza, e eu não acho que Deus se sinta desapontado ou ameaçado por isso. Acho que Deus espera isso. Foi o que aconteceu a Pedro quando ele encontrou Cornélio e com Felipe quando ele encontrou o eunuco etíope. De repente, torna-se muito mais difícil de rotular seus amigos como "impuros" ou "indignos".

Afinal, quando Deus se fez carne e habitou entre nós, os religiosos o acusaram de sair com os "pecadores" (até mesmo glutões!) sem nunca perceber que este era o ponto da questão: de que havia apenas "pecadores" com quem sair.

Claro, tudo isso levanta questões sobre quando é certo ou errado "chamar a atenção" para o pecado, e eu confesso que eu não sou boa em resolver isso. Eu sou tão hipócrita quanto qualquer um, julgando aqueles que considero julgadores, com senso de justiça própria, indulgente, fofoqueira, muito descuidada com minhas palavras, muito rápida para ficar com raiva de certas pessoas com certos pontos de vista teológicos, muito facilmente seduzida pelo dinheiro e notoriedade e ... por minhas coisas favoritas em todo o mundo ... LISTAS DE PRÊMIOS! RECONHECIMENTOS!

Eu também preciso lembrar que, apesar de toda a minha grande conversa sobre a "hermenêutica Cristocêntrica," mais frequentemente do que pareça, eu estou seguindo uma "hermenêutica Rachelcêntrica" quando leio a Bíblia, com meus próprios preconceitos, preferências, inseguranças e opiniões guiando como eu vou "pegar e escolher." (Oh, eu posso manejar cada versículo da Bíblia que desafia o Calvinismo como uma faca, mas eu preferiria não falar sobre como eu estou realmente aplicando o Sermão da Montanha em minha própria vida ou sobre o que eu realmente penso sobre amar os inimigos.)

Deveríamos parar de discutir quais instruções bíblicas aplicam-se aos dias de hoje e como devemos aplicá-las? Certamente não. Deveríamos permanecer em silêncio enquanto os vulneráveis ​​são oprimidos e explorados ou enquanto a injustiça e imoralidade permeiam nossa cultura? Não. Será que devemos abandonar as nossas convicções sobre o que a Bíblia diz que é pecado? Não, nem mesmo quando discordamos sobre elas. As perguntas retóricas estão sendo usadas em demasia em postagens de blogs? Sim.

Mas às vezes é bom lembrarmo-nos que, assim como os proprietários de escravos cristãos tinham interesse em interpretar Colossenses 3:22 literalmente, nós também tendemos a "pegar e escolher" aquilo da Bíblia que é melhor para nossa própria vantagem.

E quando fazemos categorias separadas para os "pecadores de verdade", quando nós reduzimos nossos companheiros humanos a questões teológicas sob constante debate, ao ponto em que eles não podem nem mesmo ouvir que são amados sem alguma ressalva (de "verdade em amor"); quando nossa hermenêutica convenientemente faz dos outros o problema e de nós os heróis, talvez seja o momento de nos sentarmos à mesa e conhecermos uns aos outros um pouco mais, quebrar algumas categorias e fazer novos amigos. Talvez seja o momento de deixar as pedras caírem por um pouco e passar o pão.

... saudável, integral e orgânico, é claro.


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Para saber mais sobre o literalismo seletivo, mas com um toque divertido, confira o meu livro, A Year of Biblical Woomanhood.

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Traduzido e adaptado por Romulo Rodrigues de Carvalho do texto original de Rachel Held Evans: http://rachelheldevans.com/blog/bible-clear
Todos os direitos reservados.

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Rachel Held Evans, escritora estadunidense condecorada, é uma blogueira popular e autora de livros como Faith Unraveled e do best-seller do New York Times A Year of Biblical Woomanhood. Escreveu recentemente a obra-prima Searching for Sunday. Rachel foi destaque no The Washington Post, The Guardian, Christianity Today, The Huffington Post, CNN e BBC. Ela mora com seu esposo Dan em Dayton, Tennessee. Conheça mais do seu trabalho em: http://rachelheldevans.com