Wednesday, July 1, 2015

Todo mundo é um literalista bíblico até que alguém fale sobre a gula



...ou o divórcio, ou a fofoca, ou a escravidão, ou o uso do véu, ou os ensinamentos de Jesus sobre a não-violência, ou a "abominação" de se comer ostras, ou o pecado digno de fogo do inferno de se chamar outras pessoas de idiotas.

Então precisamos de um pouco de contexto.

Então precisamos de um pouco de graça.

Então precisamos de um pouco de espaço para discordar.

Eu comecei a pensar sobre isso depois que fui criticada na semana passada por causa da minha postagem sobre amar as crianças gays incondicionalmente. Algumas pessoas ficaram muito chateadas que eu tenha tido a audácia de escrever um post inteiro do blog falando sobre a necessidade de se colocar um fim ao bullying contra crianças LGBTs sem incluir sequer uma condenação biblicamente embasada contra pessoas LGBTs, ou pelo menos uma discussão teológica em torno da questão da homossexualidade e das Escrituras.

Versículos da Bíblia foram citados. Cartas abertas foram escritas. Previsões do fim dos tempos foram feitas. Travesseiros em minha casa foram jogados a distâncias recordes.

É engraçado. Ontem, no "Superlativos de Domingo" (série de postagens que a autora publica regularmente), eu incluí uma citação de Mark Twain na qual ele se referiu a um vendedor de óleo de cobra como "um idiota", mas ninguém deixou um comentário irritado advertindo-me sobre o fogo do inferno baseado no ensino de Jesus em Mateus 5:22 de que "quem disser ao seu irmão: 'Você não vale nada' será julgado pelo tribunal. E quem chamar o seu irmão de idiota estará em perigo de ir para o fogo do inferno."

Também ninguém levantou objeções bíblicas sobre a gula algumas semanas atrás, quando eu casualmente mencionei ter me engajado numa overdose de iogurte cremoso (morango, com uma pilha de chips de chocolate, pedacinhos de Oreo e bolachas de chocolate em formato animais na parte superior, se você se interessar), ou sobre o materialismo quando eu compartilhei fotos de nosso novo carro. (Ei, para algumas pessoas, um novo Honda Civic pode parecer bastante ostentação.)

E, apesar da enxurrada de e-mails que eu recebo a cada semana condenando o meu apoio à ordenação de mulheres ao ministério, eu nunca recebi algo tão dramático quanto uma carta aberta criticando a minha recusa em usar o véu, apesar de o meu Website estar cheio de provas fotográficas daquilo que o apóstolo Paulo chama de "desgraça" em 1 Coríntios 11: 6.

Podemos rir destes exemplos ou achá-los bobos, mas a linguagem bíblica utilizada nesses contextos é na verdade bastante forte: comer ostras é uma abominação, a cabeça de uma mulher sem véu é uma desgraça, fofoqueiros não herdarão o reino de Deus, palavras descuidadas são puníveis com o inferno, rapazes que olharem para mulheres com desejos lascivos devem arrancar seus olhos.

Caramba, você poderia fazer um belo caso bíblico sobre a gula ser um "estilo de vida pecaminoso", que foi normalizado pela nossa cultura de rodízios e filas transbordantes nos restaurantes self-services, começando com passagens como Filipenses 3:19 ("seu deus é o ventre "), Salmo 78: 18 ("eles tentaram a Deus nos seus corações, pedindo a comida que eles queriam "), Provérbios 23:20 (" não esteja entre os bêbados, nem entre os comilões de carne "), Provérbios 23: 2 ("coloque uma faca na sua garganta se você é dado ao apetite "), ou melhor ainda, Ezequiel 16:49 ("Agora, este foi o pecado de sua irmã Sodoma: ela e suas filhas eram arrogantes, gulosas e despreocupadas, pois elas não ajudaram os pobres e necessitados.")

No entanto, você não vê reuniões de vigilantes do peso antes dos batismos; ou pessoas segurando placas dizendo "Deus condena os Glutões"  do lado de fora dos antros de iniquidade que são as churrascarias.

E nós nem sequer tocamos no materialismo, ou no fato de que no dia em que eu enchi minha cara de iogurte cremoso, 30.000 crianças morreram de doenças evitáveis ​​e muitas mais passaram fome.

Parece que quanto mais onipresente a violação bíblica, mais invisível ela se torna.

Então, por que tantos cristãos se concentram nos chamados "versículos-gritantes" relacionados à homossexualidade, ignorando os "versículos-gritantes" relacionadas à gula ou à ganância, ao uso do véu ou ao divórcio? Por que é que a homossexualidade é o grande debate bíblico desta década e não a escravidão (como já foi um dia), ou o crescente problema do materialismo e da desigualdade? Por que tantos defendem que o casamento gay seja ilegal, mas não o divórcio, quando Jesus nunca fez referência ao primeiro, mas falou bastante negativamente sobre o segundo?

Embora existam certamente questões hermenêuticas e culturais importantes em atuação, eu não posso deixar de me perguntar se também não há  algo mais nefasto em curso. Eu não posso deixar de me questionar se talvez a condenação bíblica seja muitas vezes um jogo de números.

Embora ela afete mais pessoas do que nós tendamos a perceber, estatisticamente, a homossexualidade afeta muito menos de nós do que a gula, o materialismo, ou o divórcio. E como Jesus disse tantas vezes em seu ministério, nós gostamos de focar nas violações bíblicas (reais ou percebidas) de grupos  minoritários, em vez das nossas próprias.

Em suma, nós gostamos atacar em bando. Nós gostamos de produzir armas usando os versos que nos afetam menos e, em seguida, atacamos grupos minoritários com elas. Ou melhor ainda, evocamos alguma linguagem sentimental sobre falar a verdade em amor pouco antes de pegar nossas pinças removedoras de ciscos que nos ajudam a desviar nossas mentes das traves desconfortáveis ​​em nossos próprios olhos.

Vemos isso na história dos líderes religiosos que encurralaram a mulher apanhada em adultério. Ela era um alvo tão fácil: uma mulher, provavelmente pobre, sem poder, e culpada do escândalo favorito dos fariseus: o pecado sexual. Quando eles a trouxeram a Jesus, estavam usando-a como um exemplo para testá-lo; para ver quão "bíblica" a resposta dEle seria. (Veja Deuteronômio 22:14-23) Jesus ajoelhou-se e rabiscou na areia antes de dizer: "Aquele que estiver sem pecado pode atirar a primeira pedra." Eles deixaram cair suas pedras.

Enquanto evitar o farisaísmo certamente afeta nosso literalismo seletivo, também temos boas razões para não condenar uns aos outros pelas violações bíblicas onipresentes (novamente, reais ou percebidas) em nossa cultura.

É difícil para mim simplesmente condenar o divórcio, por exemplo, quando eu conheço várias mulheres cujas vidas e as vidas de seus filhos podem ter sido salvas por ele, ou quando eu ouço pessoas me dizerem que prefeririam ter saído de um lar disfuncional do que ter crescido num. Temos ainda uma repulsa natural à ideia de verificar o Índice de Massa Corporal das pessoas antes de aceitá-las em nossas igrejas, especialmente quando a obesidade não é necessariamente um reflexo da gula e quando nós sabemos por nossa própria experiência ou pelas experiências daqueles que amamos que um peso não saudável pode resultar de uma variedade de fatores - de componentes genéticos a psicológicos - e quando alguns dos nossos amigos favoritos (ou quando nós mesmos) lutamos com uma relação complicada com a comida, seja através de comer em excesso ou da má alimentação.

Novamente, é um jogo de números. É difícil "outrificar" as pessoas que conhecemos e mais amamos. Parece clichê, mas tudo muda quando é seu irmão ou irmã que se divorcia, quando é o seu filho ou filha que é gay, quando é o seu melhor amigo que luta com algum vício, quando é o seu marido ou esposa fazendo algumas boas perguntas sobre o Cristianismo a respeito das quais você nunca pensou antes. Nossos relacionamentos têm uma tendência de destruir nossas categorias, de derreter o preto e o branco em cinza, e eu não acho que Deus se sinta desapontado ou ameaçado por isso. Acho que Deus espera isso. Foi o que aconteceu a Pedro quando ele encontrou Cornélio e com Felipe quando ele encontrou o eunuco etíope. De repente, torna-se muito mais difícil de rotular seus amigos como "impuros" ou "indignos".

Afinal, quando Deus se fez carne e habitou entre nós, os religiosos o acusaram de sair com os "pecadores" (até mesmo glutões!) sem nunca perceber que este era o ponto da questão: de que havia apenas "pecadores" com quem sair.

Claro, tudo isso levanta questões sobre quando é certo ou errado "chamar a atenção" para o pecado, e eu confesso que eu não sou boa em resolver isso. Eu sou tão hipócrita quanto qualquer um, julgando aqueles que considero julgadores, com senso de justiça própria, indulgente, fofoqueira, muito descuidada com minhas palavras, muito rápida para ficar com raiva de certas pessoas com certos pontos de vista teológicos, muito facilmente seduzida pelo dinheiro e notoriedade e ... por minhas coisas favoritas em todo o mundo ... LISTAS DE PRÊMIOS! RECONHECIMENTOS!

Eu também preciso lembrar que, apesar de toda a minha grande conversa sobre a "hermenêutica Cristocêntrica," mais frequentemente do que pareça, eu estou seguindo uma "hermenêutica Rachelcêntrica" quando leio a Bíblia, com meus próprios preconceitos, preferências, inseguranças e opiniões guiando como eu vou "pegar e escolher." (Oh, eu posso manejar cada versículo da Bíblia que desafia o Calvinismo como uma faca, mas eu preferiria não falar sobre como eu estou realmente aplicando o Sermão da Montanha em minha própria vida ou sobre o que eu realmente penso sobre amar os inimigos.)

Deveríamos parar de discutir quais instruções bíblicas aplicam-se aos dias de hoje e como devemos aplicá-las? Certamente não. Deveríamos permanecer em silêncio enquanto os vulneráveis ​​são oprimidos e explorados ou enquanto a injustiça e imoralidade permeiam nossa cultura? Não. Será que devemos abandonar as nossas convicções sobre o que a Bíblia diz que é pecado? Não, nem mesmo quando discordamos sobre elas. As perguntas retóricas estão sendo usadas em demasia em postagens de blogs? Sim.

Mas às vezes é bom lembrarmo-nos que, assim como os proprietários de escravos cristãos tinham interesse em interpretar Colossenses 3:22 literalmente, nós também tendemos a "pegar e escolher" aquilo da Bíblia que é melhor para nossa própria vantagem.

E quando fazemos categorias separadas para os "pecadores de verdade", quando nós reduzimos nossos companheiros humanos a questões teológicas sob constante debate, ao ponto em que eles não podem nem mesmo ouvir que são amados sem alguma ressalva (de "verdade em amor"); quando nossa hermenêutica convenientemente faz dos outros o problema e de nós os heróis, talvez seja o momento de nos sentarmos à mesa e conhecermos uns aos outros um pouco mais, quebrar algumas categorias e fazer novos amigos. Talvez seja o momento de deixar as pedras caírem por um pouco e passar o pão.

... saudável, integral e orgânico, é claro.


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Para saber mais sobre o literalismo seletivo, mas com um toque divertido, confira o meu livro, A Year of Biblical Woomanhood.

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Traduzido e adaptado por Romulo Rodrigues de Carvalho do texto original de Rachel Held Evans: http://rachelheldevans.com/blog/bible-clear
Todos os direitos reservados.

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Rachel Held Evans, escritora estadunidense condecorada, é uma blogueira popular e autora de livros como Faith Unraveled e do best-seller do New York Times A Year of Biblical Woomanhood. Escreveu recentemente a obra-prima Searching for Sunday. Rachel foi destaque no The Washington Post, The Guardian, Christianity Today, The Huffington Post, CNN e BBC. Ela mora com seu esposo Dan em Dayton, Tennessee. Conheça mais do seu trabalho em: http://rachelheldevans.com


3 comments:

  1. Olá. Descobri a Rachel Held Evans recentemente. Seus escritos me encorajam a cada dia... parece que o seu é o único post dela traduzido para o português (no Brasil). Parabéns pelo feito! EU gostaria muito de entrar em contato contigo (sobre isso e outras questões). Abs.

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